“Não existe mulher negra, existe ser mulher e negra”, afirma Janira Sodré
Por: Shisleny Gomes

Formada em História pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Teologia pelo Centro de Estudo do Comportamento Humano (Cenesc) em Manaus, Janira Sodré Miranda, 46 anos, coordenou o Programa de Estudos e Extensão Afro-brasileiro (Proafro) da PUC Goiás por sete anos (2010-2017). Atualmente é assessora da Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil (PROEX) da universidade e coordenadora do Núcleo de Estudos em Relações de Gêneros, Raça e Africanidades (NEGRA) do Instituto Federal de Goiás (IFG). Janira participa do movimento Rede Goiana de Mulheres Negras e conta um pouco dos desafios e conquistas do negro, sobretudo da mulher negra.
Coordenadora do NEGRA Janira Miranda Sodré
Foto: Reprodução
“É impossível pensar o Brasil sem a população negra. Mas é uma vitória termos vivido, nos constituído como maioria populacional e de estarmos aqui organizando a luta e resistência do Quilombo de Palmares até o presente. Uma luta constante, por uma resistência, dignidade humana e qualidade”, afirma.
O que é ser mulher negra?
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É muito difícil essa pergunta porque eventualmente ninguém pergunta o que é ser um homem branco. Ser uma mulher negra é ser uma humana. Suely Carneiro, uma intelectual da sociedade negra, falou em um evento, o Afrodescentente, em Salvador, que o melhor seria ser uma mulher negra, sem ser uma mulher negra. Eu poderia responder essa questão dizendo que ser mulher negra é um ser humano que não gostaria que seu sexo e sua cor a definissem. Ser mulher negra, mas não ser só mulher negra, ser professora universitária, mas não ser só isso. Ser só um artista, ser só uma apresentadora de TV, ser só uma Presidente da República. Ser mulher negra é sempre um movimento de estar no mundo sabendo que há um contingenciamento da nossa existência por causa da nossa cor de pele e sexo. Em vários ambientes em que eu círculo o simples fato de andar olhando para o horizonte é visto como arrogância e não com dignidade, como qualquer outra pessoa de outra cor e sexo. Não existe ser mulher negra, existe ser mulher e negra, em várias trajetórias de vida, ocupando vários espaços com vastas características. É uma comunidade que é muito plural que passa desde uma desembargadora até uma pessoa que faz o trabalho doméstico. Só porque o Brasil acostumou naturalizar uma mulher negra só porque ela é uma empregada doméstica e não como desembargadora.
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Não tem exatamente um ser. Existe pluralidade nas experiências e vivências de mulheres negras, mas eu diria que é uma coletividade que traz uma marca da colonialidade, que coloca esse corpo negro em um espaço subalterno. Coloca esse gênero, feminino e negro, num espaço de subordinação e hierarquização. Então, infelizmente ser uma mulher negra, às vezes, contingencia a existência do ser humano que abita essa pele e esse sexo.
Quando você é uma mulher negra e adquire a consciência política do seu lugar e da sua existência no mundo, você toma esse lócus subalternizado como um lugar de fala, um lugar de ação, transformação, abertura para outras mulheres e pessoas negras. Nada disso é feito sem dor pessoal e muito desgaste emocional.
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Pode até ter que escolher entre prosperar na carreira e abrir essa pauta de abrir espaços, pode ter muitas coisas relacionadas a essa ideia de ser negra, mas uma mulher negra pode ser uma quilombola, pode ser uma estudante, pode ser uma mulher negra brasileira, laureada, que ganha o maior prêmio de química. Tudo isso tem no Brasil, como tem mulheres que empoderaram e foram caladas, como o caso da Marielle Franco, pela eliminação física ou de mulheres simples, como Cláudia Ferreira, que tiveram suas vidas dizimadas pela forma como o estado e seus agentes de segurança chegam às comunidades negras. São duas mulheres, uma líder política e a outra uma dona de casa que não podemos esquecer e que demarcam ser negra, em termos de contingenciamento.
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O que fere a cidadania dessas mulheres?
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A nossa participação na vida social é desigual. A criança que vai nascer negra já tem desvantagem no atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) em relação a uma criança que não seja negra. Quando a mãe desta criança entra em trabalho de parto, se for branca, hipoteticamente vai colocar 10 miligramas de anestesia, já a negra vai ter de 30 a 60% de anestesia, segundo o dados do SUS. Isso leva à compreensão de que mulheres negras são fortes, e que ela vai conseguir ter o bebê.
Toda a socialização na vida brasileira é uma socialização racionalizada, as condições de vida, o extermínio, exposição de violência, baixa escolaridade, baixa renda e iniciação no mercado de trabalho. Raça é determinante de desigualdade no Brasil, consequentemente afeta a cidadania da comunidade negra como um todo, das mulheres negras, pressuposto porque, a cada R$ 100,00 que um homem branco ganha, a mulher branca ganha R$ 70,00, o homem negro R$ 63,00 e a mulher negra R$ 43,00.
Cidadania é algo para construir, para homens e mulheres negras porque sexo e raça são sistemas que delimitam a marca de uma classificação social. O trabalho doméstico não foi pautado na sociedade brasileira, ele simplesmente foi terceirizado pelas mulheres negras. Há uma cidadania a ser edificada, construída, constituída. Não somos mais da África, estamos aqui já há algumas gerações, mas a gente não é brasileiro, nós somos menos brasileiros do que os imigrantes que vieram aqui no século XIX, pobres como nós, mas que tiveram reforma agrária, escola, liberdade religiosa, edificaram templos luteranos, porque o Brasil queria ter uma classe trabalhadora negra. O que atrapalha a cidadania é o racismo sistêmico, socialização racialista e inverdades. Cidadania é uma construção.
Como você avalia a pesquisa do IPEA segundo a qual a mulher negra ganha menos que todas as outras classes trabalhadoras?
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Eu avalio que a pesquisa retrata a dominância de um processo que não poderia ser outra coisa. Esse dado é resultante de uma confluência de fatores que condenam as mulheres negras a pagar os piores indicadores do desenvolvimento humano. É uma tautologia que, se não tiver uma quebra, vai continuar nos piores lugares, empregos e nas próximas gerações também. Quando essa luta estava sendo feita, entre 1990 e 2000, consideravam que em algum lugar tem que quebrar essa operação. Na época do debate, várias pessoas diziam: vamos melhorar a escola básica, mas até hoje estamos esperando essa melhora. Uma sociedade que quer ser moderna, mas desigual, é atrasada. Eu diria que uma sociedade racista e sexista, que sobrecarrega as mulheres negras condenadas a territórios (estado), não chega a uma política pública de qualidade. Só quem chega é a força policial, assim seria de estranhar que não resultasse numa exclusão dos melhores empregos, posições e remuneração. Os números nos dizem que, de tanto não ter acesso a bens imateriais, sociais e simbólicos essa população permanece condenada a um gueto de sub emprego. São muitos desafios, entre esses a quebra de uma mentalidade racista. É uma disputa por transformação cultural, a gente vai ter a quebra de racismo tanto no favorecimento político, de participação, ações afirmativas, como também nas estruturas mentais do imaginário.
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Um estudo elaborado pelo Think Etnus Consultoria Planejamento e Pesquisa mostra que, até 2020, 8 em cada 10 brasileiros vão se autodeclarar negros. Como você analisa isso?
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Se seguir a tendência é fato de que 8 a cada 10 brasileiros vão autodeclarar. É isso porque o Brasil não é um país branco. O que vai acontecer é que vamos contar a contabilização do último senso do Império, quando ainda havia escravos, porque quando houve a promulgação da abolição da escravidão, estava posto esse número: de cada 100 brasileiros 80 eram escravos, alforriados ou libertos. Isso é a realidade brasileira porque uma população não se modifica rapidamente, tendências étnicas dentro de uma demografia são de longa duração. O que foi estranho nos primeiros censos republicanos a partir de 1930, pois não tinha mais negros. Desapareceram por causa da operação de branqueamento. O tabelião cartorial registrava como pardo e depois a pessoa ficava com vergonha de dizer que era negro e dizia qualquer coisa. Foi uma espécie de escamoteamento desse número. Nenhuma população muda de cor em seis gerações, é preciso muito, muito século.
Vamos nos voltar para a delimitação que já estava posta no Pós colônia. O que aconteceu foi um trabalho para envergonhar as pessoas de falarem sobre a sua identidade afrodescendente. Um dos ganhos é não ter vergonha de ser quem é. Quem fez esse movimento no país foi o movimento social negro. Tem um movimento chamado Declare sua Cor, desde 1970. Não tenha vergonha da sua cor!
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Janira Sodré avalia período que coordenou o programa Proafro
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