Reexistindo há mais de um século
Por: Luciene Dias

Luciene Dias
Doutora em Antropologia e Professora da Universidade Federal de Goiás
Vivemos uma situação complexa e, por vezes, contraditória. Complexa porque temos que nos colocar na linha de frente no processo de construção da nossa agenda antirracista em um Brasil profundamente marcado pelo racismo e pelo genocídio da população negra. Contraditória porque as instituições comemoram o 13 de maio como um marco de libertação, quando esta data deve ser ressignificada, a cada ano, como momento de resistência, resiliência e reexistência negra.
Assim vivemos hoje lutas cotidianas e extremamente agressivas para nos colocar na linha de frente do processo de construção da nossa agenda antirracista em um Brasil profundamente racista. Ressignificar o 13 de maio é nos perguntar o que foi o 14 de maio de 1888 para a população negra que, no Brasil, foi jogada à própria sorte, sem qualquer amparo ou propriedade.
Para nos mobilizar para a ação antirracista, precisamos de políticas públicas que deem conta das nossas especificidades. Cidadania integral da população negra é necessária porque ainda hoje não temos cidadania e precisamos resistir a um sistema racista, genocida e extremamente violento.
Desde a Lei do Ventre Livre que lutamos cotidianamente para tornar verdadeiramente livres nossos filhos e filhas. E é importante dizer que pela Lei do Ventre Livre, de 1871, nossos filhas e filhos ficaram a serviço dos senhores até completar 21 anos e depois foram jogados à própria sorte, mas o estado nacional indeniza estes senhores pela perda. Tanto a Lei do Ventre Livre quanto a Lei do Sexagenário são golpes históricos que demandam de nós agenciamento das nossas lutas contra o racismo.
Temos nossos exemplos, como Luiza Mahim, mulher preta e livre que viu o próprio filho, o poeta e abolicionista Luiz Gama, ser retirado dos seus braços e vendido, aos 10 anos de idade, como escravo pelo próprio pai branco. Marinete Silva, mulher preta e livre que viu a própria filha, Marielle Franco, ser executada com requintes de crueldade por um sistema dito democrático de direito porque lutava por cidadania, direitos humanos e pelo fim do racismo. São exemplos de reexistência!
Lembrar o 13 de maio é lembrar que, entre os séculos 16 e 19, chegaram ao Brasil 4 milhões e 800 mil seres humanos escravizados. É lembrar que 300 mil morreram nas viagens e, definitivamente, não podemos esquecer essa história. Em contraposição, reforçar o questionamento do que seja o dia seguinte à falsa abolição é fortalecer nossa luta. É gritar que sim, sobrevivemos e estamos construindo um mundo que nos respeite.
Lembrar o 13 de maio é denunciar que, 130 anos depois da falsa abolição, dados do Governo Federal e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados pela Unesco, mostram que jovens – entre 12 e 29 anos – negros são duas vezes e meia mais vítimas de homicídios do que os brancos. Centro e trinta anos após a falsa abolição, os números do último Mapa da Violência, com dados de 2010, mostram que são negros 75% dos jovens que tiveram morte violenta.
Devemos tomar consciência da realidade e elaborar instrumentos de combate ao racismo. Não temos dúvidas de que ainda interessa à branquitude dizer que uma assinatura deu fim às desigualdades sociais alimentadas pelo racismo. E sabemos que uma assinatura não pode dar fim, como se fosse mágica, a séculos de cativeiro, sequestros, trabalhos forçados, exploração sexual, estupros, assassinatos. Vidas negras importam e nossas vidas resistem, se reinventam e reexistem há mais de um século neste país racista!
Profª Drª Luciene de Oliveira Dias é Doutora em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia (DAN) da Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Cultural Studies pela University of Arkansas (EUA). Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação da (UFG), linha de Pesquisa Mídia e Cultura. Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais, da Faculdade de Ciências Sociais, da (UFG). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Estudo e Extensão em Comunicação e Diferença. Trabalha com pesquisas sobre relações étnico-raciais e de gênero em interface com os estudos de Comunicação e Antropologia, com foco na construção do respeito às diferenças.